"Mas eu sempre comi farinha de trigo e agora dizem que faz mal?"
De tempos em tempos ressurgem discussões a respeito de malefícios e benefícios em torno de alguns alimentos. São perguntas e conclusões das mais variadas possíveis: “Tomar café faz mal?”, “Leite de vaca faz mal para adultos”, “O ovo faz bem ou mal para a saúde?”. A pergunta da vez é sobre o trigo: vilão ou mocinho?
O trigo é um dos cereais mais consumidos em todo o mundo (juntamente com o milho e o arroz). Base alimentar de muitos países e uma das principais fontes de energia para nosso corpo. A sua importância é incontestável, sendo utilizado tanto na alimentação animal quanto na indústria farmacêutica.
Acontece que o trigo tem sido visto como um vilão para a saúde por [supostamente] conter maior conteúdo de glúten nas variedades modernas que nas antigas. Vamos entender porquê dessa acusação e se ela realmente faz sentido.
O trigo comum utilizado na fabricação do pão nosso de cada dia é a espécie Triticum aestivum ssp. aestivum. Realmente, este não é o mesmo trigo dos tempos bíblicos, mas também não se pode dizer que é um organismo geneticamente modificado. Para sua obtenção foram necessários sucessivos cruzamentos naturais e artificiais entre as diversas espécies de trigo para obter o trigo cultivado. Na sua constituição genética, o trigo é composto pela informação de genes de três espécies distintas (genoma AABBDD). Esse misturado de letras indica que o trigo comum possui em seu genoma o trigo einkorn (Triticum monoccucum) - o mais antigo de todos e o mais rico em proteínas e vitaminas-, o trigo emmer – trigo selvagem e que deu origem ao trigo durum, bom para massas secas - , e o trigo spelta -resultante do cruzamento do emmer com uma gramínea nativa. Deste último surgiu o trigo comum bom para pães.
Para que você consiga compreender um pouco sobre o assunto a ser discutido, é necessário saber que, além de carboidratos, lipídios e fibras, o trigo contém proteínas que são classificadas de acordo com sua solubilidade: albuminas e globulinas (proteínas solúveis em água, mas não formadoras de glúten) e gluteninas e gliadinas (proteínas insolúveis em água e formadoras de glúten). Outros cereais como centeio e a cevada também possuem frações de glúten.
Assim, o glúten não é uma proteína por si só, mas um aglomerado de gluteninas e gliadinas, que quando em contato com a água e submetidas a um processo mecânico (sovar), aglomeram-se pra formar o glúten. Acontece que algumas pessoas com predisposição genética à doença celíaca apresentam uma reação inflamatória do intestino delgado ao glúten. A única forma desses indivíduos terem uma vida sem dores intestinais é eliminando glúten da dieta, ou seja, não podem comer alimentos contendo trigo, cevada ou centeio e nem mesmo aqueles alimentos que tenham sido processados no mesmo equipamento que processa os que contém glúten. Outros possuem ainda alergia ao glúten, que se identifica como uma reação imunológica do organismo produzindo um anticorpo específico (imunoglobulina E) quando em contato com a proteína do trigo. Os sintomas podem ser vômitos, diarreia, coceira e falta de ar. Já aqueles com intolerância ao glúten não produzem anticorpos e nem apresentam danos físicos em seus intestinos. No entanto, quando o glúten é retirado da dieta, eles sentem um grande alívio dos sintomas (que são dor de cabeça, dor abdominal, diarreia, distensão abdominal, irritação na pele, rinite). Esse tipo de intolerância vem sendo denominada como sensibilidade ao glúten não celíaca (SGNC). Essas diferentes reações são bem definidas nos indivíduos, mas o que desencadeia o processo inflamatório ainda é desconhecido, sobretudo quanto a intolerância ao glúten.
Esse potencial benefício das dietas livres de glúten não deve ser adotado indistintamente por qualquer pessoa. O médico responsável sempre deverá ser consultado, pois uma dieta com restrição de glúten pode sim levar a uma redução no valor calórico do indivíduo, e consequentemente, o emagrecimento, mas não necessariamente causada pela eliminação do glúten, e sim porque o indivíduo comeu menos1.
Em termos técnicos de produção, alguns pesquisadores afirmam que as variedades modernas de trigo apresentam maior quantidade de glúten quando comparado com as antigas. Entretanto, diversos estudos demonstram que o conteúdo de proteínas nos grãos de trigo modernos pode ter aumentado em apenas 1% quando comparado aos trigos ancestrais considerando variedades produzidas em um intervalo de 100 anos2. Consequentemente, o conteúdo de glúten permaneceu inalterado nas variedades modernas.
Mas quanto aos micronutrientes contidos nos grãos, as variedades ancestrais realmente possuem teores aumentados, sobretudo de ferro e zinco. Esse decréscimo na quantidade de minerais nas variedades modernas pode ser explicado pela inserção de variedades semi-anão, fornecendo porte baixo ao trigo cultivado e, que alguma maneira reduziu a capacidade da planta em absorver micronutrientes do solo ou não direcioná-los para os grãos de trigo3.
Uma parcela dos pesquisadores acredita que não é apenas e unicamente o glúten o vilão dessa história. Os inibidores de amilase-tripsina e oligo-di-monossacarídeos e polióis fermentáveis (FODMAPs) dizem respeito a um excesso de carboidratos mal absorvidos presente no trigo e em muitos alimentos. Eles podem causar inchaço quanto fermentam no intestino e sintomas característicos da síndrome do intestino irritável como dor, distensão abdominal e gases. Cebola, alho, leite, iogurte, frutas como maçã, cereja, manga são alguns dos alimentos ricos em FODMAPs4.
Como se pode verificar, não existe um consenso entre os pesquisadores em relação ao que pode causar a sensibilidade ao glúten. Apenas se sabe que ela acontece sob diferentes formas, em diferentes indivíduos. Assim, diante dessa insuficiência da ciência em sanar essas dúvidas, resta a nós buscar mais informações sobre esse assunto e começar a observar a nossa alimentação.
Vale ainda desconstruir outros mitos sobre o glúten: não existe nenhuma evidência clínica que alia a ingestão de glúten ao transtorno do espectro autista (TEA)5. Os trigos antigos, sobretudo einkorn e durum não podem ser consumidos por pessoas celíacas pois contém glúten na sua constituição assim como as variedades modernas6.
Uma coisa é certa: se tivermos que eliminar todos os alimentos que poderiam causar algum tipo de intolerância alimentar, vamos chegar em um ponto em que não teremos mais alimentos para serem consumidos. Uma dieta bem equilibrada com vegetais, frutas, grãos, proteínas de origem animal e vegetal, aliada a prática regular de exercícios físicos e estilo de vida saudável, deve ser alcançada por todos aqueles que procuram ter uma vida plena. Sem excessos e se sem falta. Equilíbrio é a palavra.
Texto de autoria de Euriann Lopes Marques Yamamoto
1.Bronstein, M. D. Em busca da alimentação saudável. 2012 Disponível em: http://www.abitrigo.com.br/wp-content/uploads/2019/08/alimentacao_saudavel.pdf. Acesso em 11 agosto 2020.
2. Hucl, P., Briggs, C., Graf, R. J. & Chibbar, R. Cereal Chem. 92, 537–543 (2015).
3. Shewry P. R, Pellny T. K. and Lovegrove A. Nature plants. 2, 1-3 (2016)
4. Servick, K. What’s really behind ‘gluten sensitivity’? Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2018/05/what-s-really-behind-gluten-sensitivity. Acesso em 11 agosto 2020.
5. Piwowarczyk, A., Horvath, A., Pisula, E., Kawa, R., Szajewska, H. J Autism Dev Disord 50, 482–490 (2020).
6. Mattioti, B. Effect of wheat processing and genotype on the gluten proteins. Thesis (Doctor in Food Science). 2017. 127 p. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/177880/348596.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 10 agosto 2020.