Quem acompanha o noticiário policial se recorda que há não muito tempo havia uma divisão entre os traficantes de Mato Grosso do Sul. As quadrilhas da região sul, de Bela Vista até Coronel Sapucaia, se dedicavam à maconha e os grupos mais ao norte, na região de Corumbá, cuidavam da cocaína vinda da Bolívia.
Recentemente, no entanto, essa situação mudou muito. A maconha continua saindo da fronteira sul, onde ficam as roças da erva no lado paraguaio, mas as apreensões de cocaína se tornaram mais raras na fronteira com a Bolívia ao mesmo tempo em que quintuplicaram na Linha Internacional com o Paraguai.
A rota da cocaína exportada através do Paraguai para o Brasil e mercados internacionais mudou e agora passa por Amambai, Aral Moreira e Ponta Porã, principalmente. A nova do pó branco boliviano é o tema da série de reportagens “MS nas mãos do crime” que o Campo Grande News divulga nesta semana.
O principal motivo da mudança tem a ver com a característica econômica da região, maior celeiro agrícola de Mato Grosso do Sul. Centenas e centenas de carretas cortam o estado praticamente o ano inteiro levando grãos produzidos na faixa de fronteira, uma oportunidade única para os traficantes esconderem droga em fundo falso embaixo de soja e milho a granel.
“Há muito tempo a estratégia é usada por traficantes locais, mas as apreensões de drogas em cargas de grãos eram esporádicas. Agora, em toda a safra de soja e de milho são dezenas de caminhões flagrados com cocaína e de vez em quando também maconha”, afirmou à reportagem um policial que trabalha na fronteira.
Segundo ele, as facções criminosas presentes na Linha Internacional copiaram o método dos traficantes locais e agora se dedicam a recrutar caminhoneiros e até empresários do ramo de transporte para levar droga de Mato Grosso do Sul para São Paulo e para o Porto de Paranaguá, onde a cocaína é colocada em containers e despachada para a Europa.
Os números comprovam. A Delegacia da PRF (Polícia Rodoviária Federal) em Dourados apreendeu pouco menos de meia tonelada de cocaína em 2017. No ano passado, a cocaína apreendida nas regiões de Dourados e Ponta Porã dobrou e chegou a quase uma tonelada.
Mas está sendo em 2019 o maior aumento das apreensões da droga boliviana. De janeiro até o fim de semana passado foram 2.440 quilos – mais do que o dobro em relação a todas as apreensões do ano passado e cinco vezes o volume apreendido em 2017.
“Mato Grosso do Sul está em uma posição estratégica para os traficantes. Temos duas safras de grãos por ano, quando a quantidade de caminhões para o escoamento do milho e da soja triplica, tornando a fiscalização ainda mais difícil. Além disso, estamos em uma fronteira sem controle para quem entra e sai do país vizinho. Só favorece a sensação de impunidade”, afirma um policial da fronteira.
“A guerra entre as facções [tema da reportagem especial divulgada ontem] não é à toa. Os bandidos do PCC, do Comando Vermelho e grupos locais não estão se matando por nada. Eles lutam é pelo controle desse negócio milionário, certamente o mais lucrativo entre as atividades criminosas. Quem controla a exportação e as rotas de cocaína e maconha tem o poder nas mãos”, diz uma fonte ligada à segurança pública que pede para ter o nome preservado por medida de segurança.
Negócio milionário – O tráfico movimenta uma fortuna todos os anos no Brasil. Estimativas apontam movimento de R$ 17 bilhões por ano no país. Na Linha Internacional entre Mato Grosso do Sul e Amambay (Paraguai) não é diferente. Só a quantidade de cocaína apreendida pela PRF de Dourados em 2019 chega a quase 50 milhões de reais.
O Paraguai não produz cocaína. Planta nativa do Peru e da Bolívia e considerada sagrada pelos povos que habitavam aquelas regiões da América do Sul, a coca, matéria-prima do pó branco consumido nos grandes centros urbanos, só se desenvolve na altitude dos Andes, onde mascar a folha continua sendo um costume saudável até hoje.
Mas o território paraguaio se transformou em oásis para os grandes traficantes – Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, Luiz Carlos da Rocha, o “Cabeça Branca”, e Jarvis Gimenes Pavão estão entre eles – devido à facilidade em se manter no anonimato com proteção de corruptos homens da Polícia Nacional e de políticos locais.
Não demorou para esses grandes narcotraficantes estabelecerem uma conexão com os fornecedores bolivianos e “cortar caminho” da rota antes existente apenas da Bolívia e da Colômbia para o Norte do Brasil. Atualmente a conexão Bolívia-Paraguai-Brasil está em plena atividade.
As mulas do tráfico – Mas de nada adiantaria chegar com a cocaína na fronteira Paraguai-Brasil se não tivesse uma forma menos arriscada de mandá-la para as grades cidades brasileiras e para os portos. Aí que entram as chamadas “mulas do tráfico”, no caso da cocaína os caminhões de grãos e outros meios de transporte, inclusive de passageiros.
Na manhã do dia 22 de abril deste ano, a equipe da PRF parou na BR-163 em Dourados uma carreta com 32 toneladas de milho a granel. No fundo falso da carroceria foram encontrados 80 quilos de cocaína pura.
O motorista, Julian Centurion Ovelar, 35, morador em Ponta Porã, confessou que estava transportando cocaína pela terceira vez, para ganhar R$ 12 mil. Mas geralmente os motoristas do tráfico mentem o valor. O pagamento para uma carga desse tamanho chega a R$ 100 mil.
Duas semanas antes, 468,5 quilos de cocaína pura foram apreendidos em Dourados em ação conjunta da PRF e da Polícia Federal. A droga estava em uma carreta com caçamba dupla, carregada com 36 toneladas de soja a granel. O motorista, Dilson Araújo da Silva, 47, morador em Dourados, foi preso em flagrante.
Outra carga considerável de cocaína, 130 quilos, foi apreendida pela PRF em Dourados no dia 30 de março, no fundo falso de outra carreta lotada de milho a granel. Carlos Wesley Ferreira Barbosa, 27, morador em Campo Grande, contou te pego a carreta com a droga em Ponta Porã para levar até Paranavaí (PR), para ganhar R$ 20 mil.
No dia anterior, em uma carreta carregada com 36 toneladas de açúcar, conduzida por Luciano Verão de Lima, 39, morador em Deodápolis, os policiais rodoviários douradenses apreenderam outros cem quilos de cocaína.
Minotauro - A maior apreensão de cocaína de cocaína feita de janeiro até agora pertencia, segundo policiais da fronteira, ao narcotraficante Sergio de Arruda Quintiliano Neto, o “Minotauro”, preso em fevereiro deste ano em Balneário Camboriú (SC).
Duas semanas antes da prisão, com pessoas sendo executadas todos os dias em Pedro Juan Caballero, o traficante, com apoio do PCC, tentou retirar da fronteira uma grande carga de cocaína. Mas os 940 quilos da droga em um utilitário da BMW foram apreendidos na BR-463. Pistas que surgiram após a apreensão ajudaram a polícia a localizar o bandido no litoral catarinense.
Até em ônibus de fiéis – Mas não é apenas em caminhões de grãos que a cocaína deixa o Paraguai e corta Mato Grosso do Sul com destino aos estados mais populosos do país. Na noite de domingo, policiais rodoviários federais e agentes da PF apreenderam 556 quilos de cocaína no fundo falso de um ônibus de turismo.
Lotado de fiéis que seguiam para uma programação na Basílica de Aparecida do Norte (SP), o ônibus pertence à empresa Prado Tur Viagens e Turismo, com sede no Jardim Laranja Doce, em Dourados. Os dois motoristas foram presos em flagrante e a polícia continua investigando o caso.
(Helio de Freitas/Campo Grande News)