Uma equipe de cientistas identificou um novo vírus similar ao Sars-CoV-2, causador da Covid-19, em morcegos na Rússia. Batizado de Khosta-2, o patógeno é da mesma subcategoria de coronavírus, os sarbecovírus, e é também uma zoonose – doença que inicialmente circula entre animais. No entanto, os pesquisadores alertam que o Khosta-2 tem proteínas que podem levá-lo a infectar humanos, e que os anticorpos de pessoas vacinadas para a Covid, assim como os monoclonais disponíveis hoje como tratamento, não se mostraram eficazes em combatê-lo em testes.
“É uma questão importante a análise feita in vitro (laboratório) de que o vírus tem esse potencial de replicação em células humanas. É um alerta, mas isso pode nunca se realizar na prática. Só que mostra algo fundamental que temos hoje, que são muito mais grupos atentos a esse tipo de situação, uma necessidade de vigilância melhor que ficou clara com a pandemia da Covid-19. Assim podemos antever novos problemas, a emergência de novos patógenos e ter capacidade de evitar que eles avancem”, explica o coordenador da Rede Corona-Ômica BR – MCTI , monitoramento nacional de amostras do vírus da Covid-19, Fernando Spilki, virologista da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul.
O grupo que identificou o Khosta-2 foi liderado por cientistas da Escola para Saúde Global Paul G. Allen, da Universidade do Estado de Washington, nos Estados Unidos. Eles publicaram as descobertas sobre o novo vírus, assim como os resultados dos testes com ele em laboratório, na revista científica PLoS Pathogens nesta semana.
“Nossa pesquisa demonstra ainda que os sarbecovírus que circulam na vida selvagem fora da Ásia – mesmo em lugares como o oeste da Rússia, onde o vírus Khosta-2 foi encontrado – também representam uma ameaça à saúde global e às campanhas de vacinas em andamento contra o Sars-Cov-2 (Covid-19)”, afirma o virologista da universidade e autor correspondente do estudo, Michael Letko, em comunicado.
Os pesquisadores explicam que centenas de sarbecovírus foram descobertos nos últimos anos, de forma predominante em morcegos na Ásia. No entanto, a maioria não foi identificada como capaz de infectar células humanas, e não apresentavam semelhanças com o vírus que causa a Covid-19. O próprio Khosta-2, assim como um similar chamado de Khosta-1, foram registrados pela primeira vez no fim de 2020, mas na época não demonstraram uma ameaça por não indicar que poderiam se disseminar entre pessoas.
“Geneticamente, esses estranhos vírus russos pareciam alguns dos outros que foram descobertos em outras partes do mundo, mas como não se pareciam com o Sars-CoV-2, ninguém pensou que fossem realmente algo para ficar muito intrigado. Mas, quando os observamos mais, ficamos realmente surpresos ao descobrir que eles podem sim infectar células humanas. Isso muda um pouco nossa compreensão desses vírus, de onde eles vêm e quais regiões são preocupantes", alerta Letko.
O Khosta-1 não indicou grandes preocupações em relação à possibilidade de contaminar humanos. Porém, ao estudar o Khosta-2 em laboratório, os cientistas observaram que, assim como o vírus da Covid-19, ele pode usar suas proteínas Spike que ficam na superfície do microrganismo para se anexar a um receptor chamado de enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), encontrado nas células humanas, e então infectá-las. Essa proteína, também conhecida como S, é parte importante do processo de contaminação por um vírus, sendo a da Covid-19 alvo do desenvolvimento de muitas vacinas, por exemplo.
“Os receptores nas células humanas são a maneira como os vírus entram nas células. Se um vírus não pode entrar pela porta, então não pode entrar na célula e é difícil estabelecer qualquer tipo de infecção”, explicou Letko em entrevista à revista Time.
A descoberta surpreendeu os pesquisadores, que passaram então a testar se os anticorpos produzidos pelos imunizantes utilizados hoje para a Covid-19 poderiam proteger contra a infecção por esse novo vírus. No entanto, os resultados, ao menos em testes de laboratório, não trouxeram boas notícias.
Utilizando amostras de soro de pessoas vacinadas contra a Covid-19, a equipe observou que os anticorpos presentes ali não conseguiram neutralizar o Khosta-2. Eles também testaram amostras de soro de pessoas infectadas pela variante Ômicron da Covid, mas as defesas induzidas ali também não foram efetivas contra o novo vírus. Por fim, eles testaram anticorpos monoclonais disponíveis hoje como tratamento do coronavírus, mas que também não tiveram resultados satisfatórios.
“Não queremos assustar ninguém e dizer que este é um vírus completamente resistente a vacinas. Mas é preocupante que existam vírus circulando na natureza que tenham essas propriedades, que eles podem se ligar a receptores humanos e não são tão neutralizados pelas respostas atuais das vacinas”, disse Letko à Time.
O cientista acredita que a descoberta sublinha a importância de eventualmente serem desenvolvidas novas vacinas universais direcionadas para os sarbecovírus de modo geral, e não apenas para as variantes atualmente conhecidas do causador da Covid-19. Porém, apesar do tom de preocupação, ele afirma que o novo vírus não tem alguns dos genes que se acredita estarem envolvidos na disseminação entre humanos, o que é um bom sinal. Ainda assim, existem outros riscos caso o patógeno seja deixado de lado, como de ele se recombinar com um segundo vírus, possivelmente o próprio Sars-CoV-2.
"Quando você vê que o Sars-CoV-2 tem essa capacidade de se espalhar de volta de humanos para a vida selvagem (como em caso de contaminação de outros animais com a Covid-19), e que há outros vírus como o Khosta-2 esperando nesses animais com essas propriedades que realmente não queremos que eles tenham, isso configura um cenário em que o dado continua rolando até que eles se combinem para criar um vírus potencialmente mais arriscado", diz Letko.
Spilki, da Rede Corona-Ômica, ressalta que o novo vírus é um exemplo também do aumento de patógenos de animais que desenvolvem uma capacidade de contaminar células humanas.
“Esse é um alerta que vai se mais e mais frequente porque a entrada de um vírus de animais na espécie humana é cada vez mais presente, nós sabemos disso. Mas é também porque estamos monitorando muito mais. Nós avançamos muito em diversos locais do mundo em termos de vigilância de novos vírus em espécies silvestres e possíveis "pulos" para humanos, esse tipo de trabalho demonstra que estamos muito mais atentos”, diz o virologista.
Em relação às ferramentas como vacinas para se preparar para o combate desses novos vírus com antecedência, o pesquisador ressalta que elas são essenciais, mas o seu desenvolvimento ainda não está acessível da forma como deveria para uma resposta rápida e efetiva.
“Existe esse outro lado, que estamos mais atrasados, que é justamente na consolidação de plataformas rápidas de geração de novas vacinas. Isso porque elas precisam estar espalhadas pelo mundo todo para uma resposta rápida às novas doenças”, destaca o especialista.